Robôs com DNA binacional
Startups brasileiro-canadenses trazem a inteligência artificial para o cotidiano e mostram que ficção científica é coisa do passado
por Maria Emília Farto
O interfone toca e, ao abrir a porta, você encontra um robô que lhe traz uma encomenda dentro de um baú; sem cerimônia, você abre a tampa e pega o produto — devidamente higienizado por um sistema de raios UVC, que elimina microrganismos prejudiciais à saúde, incluindo o SARS-CoV-2, responsável pela covid-19. No shopping center, outro robô percorre os corredores carregando o almoço de alguém, e a entrega acontece com a mesma naturalidade. Em outra cidade, Agatha, a inteligência artificial utilizada no sistema de câmeras de monitoramento, impede um roubo ao alertar a equipe de segurança, em tempo real, sobre o comportamento suspeito de duas pessoas numa determinada localização de um condomínio industrial.
Todas essas cenas poderiam perfeitamente estar em um roteiro de ficção científica, mas já fazem parte do cotidiano. O robô de entregas é o Ada, veículo autônomo adotado pela plataforma brasileira de entregas de alimentos iFood como parte de seu sistema de delivery no Shopping Iguatemi e em alguns condomínios residenciais de Ribeirão Preto, cidade no interior do estado de São Paulo; Agatha já opera em mais de 5 mil câmeras, abrangendo cerca de 250 mil pessoas por dia na cidade de São Paulo.
Além da inteligência artificial, as duas histórias têm outro ponto em comum: ambas são frutos de uma nova geração de startups, as brasileiro-canadenses. Conhecido como referência mundial no desenvolvimento de inteligência artificial, o Canadá tem atraído cada vez mais startups brasileiras, por oferecer um ecossistema maduro de inovação e uma série de programas de apoio ao seu desenvolvimento.
Muitas das startups brasileiras chegam ao Canadá atraídas por programas de aceleração de incubadoras certificadas pelo governo canadense. Foi o caso da Data H, que, após ser escolhida para ser incubada no Spark Centre, contou com programas de mentoria que contribuíram para entender sua vocação de AI venture builder e segue atuando nos dois países. “Criamos a Data H no Brasil, em 2016, com foco na produção de inteligência artificial aplicada. No Canadá, tivemos o apoio de um ecossistema maduro, que nos permitiu entender nossa identidade e explorar todo o nosso potencial. As iniciativas que têm permitido a criação das startups brasileiro-canadenses vêm trazendo tecnologias capazes de transformar vários setores da economia mundial”, afirma Evandro Barros, CEO da Data H.
Uma spin-off da Data H, a Synkar, criadora do Ada, além de atuar no Brasil está incubada desde 2019 no Spark Centre, onde também participa dos programas de aceleração da DMZ e da Communitech. “Apesar de ter acabado de se juntar ao Communitech, a Synkar já colhe frutos das consultorias e conexões na jornada de escala de produção em massa na qual estamos embarcando em 2022”, afirma Matheus Theodoro, CEO da Synkar.
Parte da jornada a que Theodoro se refere é o início da exportação do Ada, com produção completamente vendida até 2023 e fila de espera de empresas da Irlanda, Canadá, Portugal, Malásia e Brasil. O CEO afirma que a aplicação dos robôs autônomos de entrega não está apenas na otimização e melhoria dos serviços já conhecidos. “Com a tecnologia de veículo autônomo que desenvolvemos, nosso objetivo é tornar o nosso robô de entregas similar ao smartphone: um equipamento que permite a criação de inúmeras aplicações para ele e a partir dele”, compara.
“Com a tecnologia de veículo autônomo que
desenvolvemos, nosso objetivo é tornar o robô de entregas algo similar ao smartphone: um equipamento que permite a criação de inúmeras aplicações para ele e a partir dele”
Outro caso de sucesso resultante da aproximação entre os dois países é a Kevares, plataforma de gerenciamento de robôs autônomos. “A junção Brasil-Canadá é poderosa. As startups selecionadas para os programas de aceleração canadenses se destacam globalmente”, observa Joel Tavares, CEO da Kevares, também incubada no Spark Centre e com grandes expectativas para 2022. A empresa deu início a projetos-piloto com robôs-cachorro, da Unitree, em inspeções para os setores de construção civil e elétrico — centrais de distribuição em Kingston, no Canadá, e na histórica São João del-Rei, no estado brasileiro de Minas Gerais. Em abril, a startup avança para operações integradas entre robôs de quatro rodas, robôs-cachorro e drones. Paralelamente, a operação de robôs de entrega será expandida em universidades e condomínios residenciais brasileiros e canadenses.
A Agatha é uma plataforma de inteligência artificial focada em análise comportamental, criada pela NoLeak Defence e reconhecida pela Singularity University como uma tecnologia que poderá melhorar a vida de mais de 1 bilhão de pessoas. Fundada no Brasil em 2018, essa startup da área de segurança iniciou sua operação em Toronto em 2020, após passar pelo programa de aceleração da Next AI. Desde então, a NoLeak já passou pelo Creative Destruction Lab (CDL) e atualmente integra o Communitech. Foi convidada pelo governo canadense a participar de testes em ambiente 5G no país. “Nossos projetos estão no Brasil, mas a presença no Canadá é essencial, porque nos põe em contato com pessoas que são referências em inteligência artificial no mundo. Essa é a base da Agatha”, celebra Rafael Libardi, CEO da startup.
A abertura para novos mercados, um ecossistema de inovação maduro e o ambiente multicultural, fatores considerados fundamentais no mundo das startups, fazem do Canadá a porta de entrada para um mundo sem fronteiras, especialmente quando se trata do mercado de tecnologia. “O mercado digital não tem limites físicos. É quase obrigatório ir para fora para se tornar realmente uma startup de sucesso”, observa Cezar Taurion, um dos mais renomados especialistas em IA do Brasil.
O robô-cachorro tem a tecnologia dos carros
autônomos, complexo sistema de sensores, câmeras estrategicamente posicionadas e design com “patas”, o que facilita movimentos como subir e descer escadas para inspecionar locais perigosos
A mesma avaliação tem Regina Noppe, CEO e fundadora da Dream2B, que já levou mais de 50 empresas para programas de aceleração canadenses. “Quando comecei a levar startups brasileiras, em 2016, o mundo só enxergava, como possibilidade de crescimento para startups de tecnologia, o Vale do Silício”, diz.
De acordo com os especialistas, o momento é propício para que as startups brasileiras busquem a internacionalização, e o Canadá é a plataforma ideal. “O Brasil ainda é um mercado fechado. O ponto principal na relação das startups Brasil e Canadá é que uma experiência internacional é extremamente importante. Diferente da realidade brasileira, o Canadá é um país onde você faz acontecer, possui um novo estilo de fazer negócios e oferece oportunidades para conversar com mentores que têm outra perspectiva”, enfatiza Taurion.
Além das condições favoráveis que o Canadá oferece, outro sinal de que este é o momento adequado para uma internacionalização é o nível de qualidade e amadurecimento de boa parte das startups locais. “Nas áreas de inteligência artificial e cybersecurity temos muita coisa bem-feita aqui no Brasil — empreendedores com visão, capacitação tecnológica. Eu tenho absoluta certeza de que cada vez mais essa relação Brasil-Canadá será extremamente positiva, inclusive para o mercado global. Tenho visto muitas experiências de sucesso e espero que continue assim”, observa Paulo Perrotti, presidente da CCBC de 2017 a 2021.
Segundo Perrotti, questões de saúde, combate a fraudes e serviços em geral, inclusive financeiros, devem ser o grande foco de investimento e aplicação de IA no Brasil. Ele afirma que o mercado brasileiro é exigente e muito aderente às novas tecnologias, o que contribui para o intercâmbio de conhecimentos. “É possível dizer que, dentre os países do mundo, o Brasil pode ser considerado um early adopter no que se refere a inovação. As tecnologias canadenses de infraestrutura, principalmente de smart cities, IA e blockchain certamente terão grande aplicabilidade para prover novos serviços e atender a demanda da sociedade, principalmente no que se refere aos serviços públicos, varejo e financeiro”.
Sherry Colbourne, CEO do Spark Centre, incubadora certificada pelo governo canadense para selecionar startups para o Startup Visa e pela qual várias startups brasileiras têm passado, vê muita afinidade e positividade entre canadenses e brasileiros, inclusive na forma de se comportar. “Nosso éthos é ‘trabalhe duro, divirta-se muito’!”, brinca. E acrescenta: “As startups brasileiras trazem tecnologia de ponta, uma coragem fenomenal e, o mais importante, uma contribuição generosa para a cultura do nosso ecossistema de inovação”. Sobre o futuro entre os dois países, a executiva o define em uma palavra: “conexão”.
Apesar da aparência de animal de estimação, o que poderia remeter inicialmente ao mundo doméstico, o cão-robô é amplamente utilizado na indústria de construção civil e na prestação de serviços governamentais — como as operadoras de energia elétrica. Seu formato com “patas”, por exemplo, facilita subir e descer escadas e se movimentar para inspecionar locais perigosos.
CCBC promove missão comercial focada em inteligência artificial
A Câmara de Comércio Brasil-Canadá promove, de 2 a 6 de maio de 2022, o World Summit AI Montreal. De acordo com Armínio Calonga Júnior, da área de desenvolvimento de negócios da CCBC, a missão é destinada a startups e empresas que trabalhem ou que utilizem grande quantidade de inteligência artificial em suas operações ou negócios.
Montreal é referência mundial de AI e por isso, a missão da CCBC inclui uma programação complementar exclusiva, além do evento.
Além de uma agenda de três dias com visitas e reuniões em empresas e universidades, a programação inclui participação no World Summit AI Americas, evento que reúne todo o ecossistema de IA, startups, acadêmicos, investidores, líderes empresariais, todas as grandes empresas de tecnologia e palestrantes de renome mundial.
“Nosso objetivo é aumentar a interação entre empresas brasileiras e canadenses e apresentar aos brasileiros aplicações de AI das quais possam se beneficiar”, afirma Calonga.
Mais informações podem ser obtidas pelo e-mail: [email protected]