Redesign Global
Para economistas, pensadores e até o papa Francisco, as relações econômicas deverão se tornar cada vez mais fraternas e consequentes
por Ronald Sclavi
Para surpresa da intelectualidade que tenta compreender um mundo em dramática transformação, foi ao campo da economia e das relações de trabalho que o papa Francisco apontou sua verve ao redigir a encíclica Fratelli tutti. Segundo o líder da Igreja Católica, “Abrir-se ao mundo” é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. “Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes econômicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único”.
O economista, ex-banqueiro e escritor Eduardo Moreira concorda com o pontífice. “Estamos acostumados a ver o mapa-múndi com fronteiras geográficas. Mas o mundo está cada vez mais dividido entre os grupos econômicos. Dividido em menos partes, ou seja, um grupo cada vez menor controlando uma parcela cada vez maior”, afirma. A saída para esse impasse, segundo ele, passa pela diversificação econômica de base tecnológica com vistas ao ganho de competitividade. “Para que possamos nos atualizar, teremos que comprar tecnologia”, resume. O problema é que inovação custa caro e, por isso, está além das possibilidades de várias sociedades.
André Perfeito, economista-chefe da corretora de valores Necton, cita a Tesla, que, mesmo sendo a indústria automobilística com maior valor acionário no mundo, não é líder de vendas. Segundo o economista, essa indústria, que desenvolve carros que não usam gasolina, foi financiada por um mercado financeiro tão sofisticado e complexo quanto ela, capaz de “construir pontes para o futuro”. Para ele, “teremos de definir novas regras de governança; precisamos encontrar um meio de tornar o comércio global menos predatório e mais organizado”. Ele adverte, porém, que essas mudanças dependem mais de mobilização e posicionamento dos atores sociais do que de qualquer movimentação de mercado.
Nessa mudança de paradigmas que orientam o capitalismo, o meio ambiente também figura entre as preocupações do papa. “O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres, nem acima do respeito pelo ambiente”. Francisco acrescenta que, “se nos preocupa o desaparecimento de algumas espécies, deveria afligir-nos o pensamento de que em qualquer lugar possam existir pessoas e povos que não desenvolvem o seu potencial e a sua beleza por causa da pobreza ou de outros limites estruturais. É que isto acaba por nos empobrecer a todos.”
Uma nova arquitetura social deve dar a todos a possibilidade de enxergar um futuro de fraternidade, prosperidade e preservação da natureza – afinal, todos habitamos o mesmo endereço no cosmos
Para Luiz Fernando Lucas, advogado especializado na área de compliance, o papa indica uma tendência já incorporada por empresas de olho em consumidores cada vez mais atentos às questões da responsabilidade social e da sustentabilidade em todos os campos. O especialista lembra o conceito de ESG (environmental, social and governance), que já representa um mantra nas principais bolsas de valores do planeta. Segundo ele, “compliance e integridade, não apenas nas empresas, mas na sociedade, se não vierem por consciência (das pessoas), virão por necessidade ou pela inteligência de perceber que os resultados serão melhores, e os riscos, menores — tanto individual quanto coletivamente.”
Energias limpas, igualdade de oportunidades, prosperidade global e a celebração da diversidade fazem parte do mundo que queremos desenhar
Na mesma linha, César Souza, presidente do Grupo Empreenda, especialista em estratégia, liderança e gestão, acredita que “precisamos construir o futuro de uma economia mais humanizada e migrar para o capitalismo humanístico no ponto da convergência entre o local e o global, entre a tecnologia e o humano, entre o capital e o social, o presencial e o virtual.” Ele defende a ideia de que “o empreendedorismo está se dinamizando com a situação imposta pela pandemia e por vários outros fatores (e valores) que já causavam profunda transformação na sociedade, nas empresas, nas famílias e nos hábitos de consumo.”
“Numa sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio de crescimento pessoal”
Na fronteira desse novo momento da economia estão as relações de trabalho. Francisco prega que “não há pobreza pior do que aquela que priva do trabalho e da dignidade do trabalho. Numa sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio de crescimento pessoal, de estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável pelo desenvolvimento do mundo e, finalmente, viver como povo”.
O pesquisador e consultor sindical João Guilherme Vargas Netto, um dos conselheiros mais respeitados entre os trabalhadores organizados do Brasil, reforça que o papa é das poucas vozes do planeta que afirmam a centralidade do trabalho nas relações socioeconômicas. “Nos últimos anos, surgiu a figura do indivíduo ‘destrabalhável’, como se as empresas fossem autônomas e não dependessem da força de trabalho dos seus empregados”, observa.
Mais otimista, o professor da Fundação Getúlio Vargas, Luiz Carlos Cabrera, referência internacional na área de gestão de pessoas, afirma que “as relações de trabalho progrediram no mundo todo, as equipes globais se estruturaram sem a dificuldade dos vistos de trabalho ou mesmo de entrada em certos países. O esforço coletivo superou as barreiras legais e criou uma força de trabalho efetivamente global, mas cada um vivendo no seu país.”
“O conceito de fraternidade inclui o paradigma do respeito ao indivíduo, à cultura e à natureza, elementos interligados e codependentes da produção e distribuição da riqueza no planeta”
Cabrera ressalta que o mundo superou “o preconceito contra o trabalho feito em casa, caiu o estereótipo do trabalhador que, sem controles rígidos, deixaria de ser produtivo, e aumentaram as interações entre níveis diversos da hierarquia organizacional, trazendo uma enorme surpresa para alguns ‘chefes’, que descobriram haver inteligência fora da sala da diretoria”.
Essa relação entre o global e o local tem impactos culturais relevantes. Para a antropóloga Suzana Larangeira, “a reinversão de valores, o olhar direcionado ao ‘outro’, a mudança de um capitalismo exagerado para um pós-capitalismo humanitário fornece prenúncios de uma mudança significativa e otimista. Ao mesmo tempo em que, nas redes sociais, compartilhamos assuntos banalizados, supérfluos e efêmeros, vemos populações inteiras de seguidores mobilizados em ações e atitudes para o bem comum nas sociedades”.
Luiz Carlos Cabrera, Suzana Larangeira. Tecnologias amigas do meio ambiente, como carros elétricos e agricultura sustentável, fazem parte do novo desenho global
O conceito de fraternidade ganha contornos cada vez mais amplos e inclui, como Francisco destacou em sua encíclica, o paradigma do respeito ao indivíduo, à cultura e à natureza, elementos interligados e codependentes da produção e distribuição da riqueza no planeta.
Afinal, lembra o pontífice, somos todos irmãos.
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