Leitura de mentes, reprogramação cerebral, alteração de memórias traumáticas: novas tecnologias permitem o avanço da neurociência para além dos filmes de ficção científica
Por Estela Cangerana
Um sistema de inteligência artificial entra na mente das pessoas, cria a ilusão de um mundo real e é combatido por um grupo liderado por um jovem programador. Esse é, resumidamente, o enredo de Matrix, sucesso arrebatador de bilheteria nos cinemas no ano de 1999. A tecnologia, que há 20 anos era pura ficção usada para o mal nos filmes, hoje permite incríveis avanços na neurociência para tratar problemas do homem moderno e melhorar a qualidade de vida de muita gente.
Parecia impensável, mas estamos perto de “ler” mentes, conseguimos prever a tomada de decisão das pessoas, reconsolidar memórias retirando medos ou traumas e até transferir consciências. Tudo graças à evolução das pesquisas e das tecnologias que as suportam. “Acredito que a neurociência veio para atender os desejos mais íntimos da humanidade. Entendendo como funcionamos, podemos aplicar isso para o bem da sociedade”, afirmou a neurocientista Tâmires Corrêa, da Brain Technology.
Isso significa, por exemplo, a união da ciência com a engenharia e a computação para estudar melhor o cérebro, entender assinaturas cerebrais, enxergar ativações do córtex e decodificar as narrativas que estão nas mentes das pessoas. “Estamos muito perto de ler mentes. Já sabemos que imaginar e ver têm a mesma assinatura cerebral. As tecnologias que temos atualmente melhoram a cada dia na tradução e definição dessas imagens. Acredito que em pouco tempo teremos resultados ainda melhores”, explicou.
Na mesma linha vêm as técnicas para aprimorar tomadas de decisão. “A partir do momento em que podemos ler o ser humano, surge a questão de como prever o que ele fará e estimular a tomada de decisão.” Vários mecanismos atualmente estão disponíveis para entender estímulos, reações e ativações no nosso cérebro, como sensores que detectam impulsos elétricos, sensores de calor e suor, mapeamento do olhar e sua resposta na mente etc. Eles já são usados para aperfeiçoar a assertividade de campanhas publicitárias e de saúde, por comprovadamente aumentarem o chamado “call to action” nessas campanhas (a ação das pessoas desejada pela campanha).
Fim da depressão e de traumas
Em outro campo também avançam consideravelmente o desenvolvimento de novos tratamentos e a cura de doenças pelo restabelecimento do equilíbrio no cérebro. Por meio de estimulação magnética, por exemplo, se pode tratar depressão hoje em dia com resultados rápidos e uma eficácia de 80%. Já se fala até em uma vacina para o problema.
Segundo a Tâmires Corrêa, as novas descobertas no funcionamento do cérebro associadas ao desenvolvimento de fármacos ainda permitem coisas até pouco tempo ditas impossíveis, como um comprimido capaz de acabar com um trauma. “Hoje conhecemos como acontece a associação de memórias a sentimentos e é possível sim, por meio de um medicamento ingerido, reconsolidar uma memória, apagando dela a associação com um sentimento específico, como medo. E é definitivo, a pessoa nunca mais terá aquele medo”, revelou.
Da mesma forma, a evolução nas técnicas de edição genética permite tanto alterações para a cura de doenças como Mal de Parkinson e Alzheimer quanto “melhoramentos” para aprimorar a qualidade de vida. Segundo a neurocientista, ainda há muito mais a caminho, como o uso de neuropróteses para diversos fins com cada vez menos rejeição e mais eficácia para, por exemplo, recuperar pessoas com lesões neurológicas.
Em mais uma linha distinta de trabalho têm evoluído as condições para, no futuro, ser possível a migração da mente humana para supercomputadores, transferindo consciências. Sobre a consciência humana, inclusive, pesquisas tentam comprovar que ela também está em constante evolução ao longo das gerações, assim como o corpo.
Inspiration
As inúmeras possibilidades que se abrem para a sociedade com essas novas descobertas devem mudar a maneira como vivemos e enxergamos o mundo à nossa volta. “Caminhamos para entender melhor quem nós somos, o que nossa mente é e o que pode fazer. Acredito que a humanidade vai crescer com essa tecnologia. Poderemos resolver muitos problemas e fazer coisas incríveis”, disse a neurocientista. Ela apresentou as novas descobertas e as tendências dos trabalhos que interligam a ciência e a tecnologia durante a primeira edição do Inspiration, série de eventos promovidos pela Comissão de Tecnologia (CT) da CCBC.
A ideia dos encontros é justamente apresentar os novos caminhos da tecnologia e o impacto que eles trazem na vida das pessoas. “Queremos realmente democratizar a tecnologia para todos, compartilhando conhecimentos em diversas áreas”, afirmou a coordenadora da Comissão, Carine Berteli Cardoso, account executive na Blueshift Brasil. “Nossa intenção é ser um celeiro para a troca de experiências, criando novas oportunidades de negócios.”
Brasil e Canadá
No Brasil, um dos centros de pesquisa e referência em neurociência integrada à engenharia e a tecnologia é o Campus do Cérebro, composto pelo Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra (IIN – ELS) e a Escola Lygia Maria Rocha Leão Laporta, e atualmente gerido pelo Instituto Santos Dumont (ISD), no Rio Grande do Norte. No Canadá, a McGill University, a Université de Montréal e Institut Armand Frappier (INRS) são alguns dos centros que se destacam no setor, com pesquisas para novos tratamentos de lesões no sistema nervoso.